segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Primeiro Amor

Ninguém nunca se esquece de seu primeiro amor. Do momento em que, pela primeira vez, sua pele enrubesce e sua temperatura sobe, suas palmas ficam molhadas de suor e tudo dentro de você parece estar sendo torcido por mãos invisíveis. É como estar deliciosamente doente, ou ter sido agradavelmente envenenado. É algo que carregamos pelo resto de nossas vidas.

O que poucas pessoas lembram, ou sequer têm conhecimento de que aconteceu, é do momento em que elas foram o primeiro amor de alguém. O causador de afeições, e não a vítima delas.  Como quando você foi um primeiro amor, tantos anos atrás.

Dificilmente você vai lembrar-se daquela manhã ensolarada de verão, o sol implacável dominando os céus enquanto você caminhava pela rua. Aquele brilho inclemente estava colocando o mundo de joelhos, mas não você. Naquele dia você vestia o verão como um manto de luz e calor, e foi então que ele te avistou. A maneira como seus olhos reluziam – eles jamais estiveram tão lindos como naquele dia, sob a luz cor de mel – bastaria para matar de amor seu admirador, mas foi o seu olhar que o cativou por completo. Cheio da peculiar mistura de confiança determinada e leveza de espírito, esses eram os olhos que ele poderia seguir pelo resto da vida. Quantas vezes mais, depois daquele dia, você assolou o mundo com a beleza desse olhar?

Naquele breve momento você foi o único foco de olhos pequenos e complexos. Sua imagem refletida uma centena de vezes, com cada detalhe, cada minúcia da sua forma, cada pequeno trejeito de seus movimentos em cada iteração sendo carinhosamente memorizados.  Ele não podia piscar, e mesmo se pudesse não se atreveria.

O que para você foi apenas um segundo, para aquela minúscula mente frenética e de desejos simples foi tempo demais, mais do que ele poderia suportar. Ele tinha que fazer algo, tinha que se aproximar daquela figura divina, ganhar sua atenção, por mais impossível que fosse. Apenas um minúsculo instante sob seus graciosos olhos faria da vida dele um paraíso.

Alçando voo em asas delicadas como vidro ornamental, ele foi até você. Ele flutuou tão perto quanto ousava, refletindo o sol em sua carapaça para te impressionar com tons líquidos que iam do verde azulado ao azul esverdeado, passando pelo roxo que de alguma forma existe entre eles. Tão próximo estava que seu perfume o atingiu com a força de uma erupção, todas as nuances químicas de seu hálito, suor e feromônios sendo avidamente absorvidas por antenas famintas.

Foi então que você o olhou. O zumbido amoroso que ele produzia para encher seus ouvidos finalmente chamou sua atenção. Você olhou diretamente para ele e nada mais, naquele que foi o momento mais alegre daquela minúscula vida. Ele não queria que acabasse jamais, ele poderia olhar apenas para seus enormes olhos como duas piscinas para sempre e esquecer o resto do mundo.
E foi por isso que ele não viu as costas de sua mão chegando.

Naquele momento você partiu o coração de seu pequeno admirador. Você também partiu uma asa e duas pernas. Mas mesmo enquanto agonizava no chão, ele não conseguia deixar de te olhar com amor absoluto e devoto.


E lá estavam vocês. Ele despedaçado no chão, olhando para você como aquilo que poderia ter sido. Você, com um último olhar de relance, vendo apenas aquilo que ele era. O pássaro que pousara próximo, olhando-o como aquilo que ele estava prestes a se tornar.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Encruzilhada

Em algum lugar em sua cidade, em uma das esquinas de um cruzamento, está sentado um senhor. Um homem simples, seu cabelo ralo da cor de fumaça e sua pele marcada por anos demais, ele vigia as casas onde as ruas se cruzam. Normalmente isso significa apenas estar sentado em sua cadeira, e por isso ele é modestamente gratificado.

Ao lado do homem está o cachorro amarelo, conhecido assim por ser ao mesmo tempo um cachorro e amarelo.  Ele também possui uma cadeira que usa ocasionalmente, enquanto mantêm sua própria vigília. Ele não é pago, mas recebe alguns biscoitos esporádicos.

Juntos eles passam os dias entre as casas elegantes e na sombra das árvores, observando o movimento, caminhando a passos lentos pelas quatro direções do cruzamento para garantir que tudo esteja tão bem quanto esperado. As pessoas os cumprimentam ao saírem de suas casas, e os ‘bom dias’ são prontamente respondidos com acenos de mão e cauda enquanto eles se encarregam de varrer as folhas que cobrem a rua (tarefa que ocupa bem mais o homem, mas ele não jogaria isso no focinho de seu amigo).

É uma vizinhança tranquila e amigável, o que facilita o trabalho deles, mas isso não significa que não haja trabalho a ser feito. Especialmente à noite. Seja algum moleque com uma lata de spray querendo desfigurar algumas fachadas, um grupo de mal-intencionados procurando uma entrada para saquear as residências ou uma pobre alma tentando deixar oferendas para alguma entidade misteriosa em troca de ganho pessoal, lá estão eles para impedi-los.

Normalmente sua mera presença e alguns sopros de apito bastam para desencorajar os malfeitores, mas às vezes eles precisam se envolver mais diretamente. Como na vez em que treze figuras encapuzadas arrastaram uma jovem atordoada para o meio do cruzamento, onde a prenderam no chão e sacaram uma faca estranha em formado de serpente enquanto recitavam algo que fazia os ouvidos doerem. Foram precisos uns bons latidos e umas vassouradas para dispersar esse bando.

Mas dias agitados assim são bem raros, especialmente para o velho. O cachorro amarelo costuma ficar mais ocupado, seja interagindo com os cães que passam ou assustando gatos e outras coisas que tentam se aproximar por de fora do mundo. O velho às vezes as nota, como sombras estranhas que não deveriam estar lá, quando as folhas das árvores se movem sem que haja vento. 

No fundo ele fica muito contente que isso seja o máximo que ele pode ver, pois ele nunca vai esquecer-se do que o cão disse para ele na única vez em que falou, com uma voz mais linda que o primeiro pôr-do-sol que se vê na vida. Ele falou que, assim como o velho guarda uma encruzilhada, ele também, mas é um cruzamento de caminhos diferentes, ligando lugares que ele não quer conhecer.

Sabe como tantos ritos, cerimônias ou seitas, normalmente do pior tipo, exigem um cruzamento para serem realizados? Bom, ao contrário do que se pensa, não basta qualquer cruzamento. Elas falam desse cruzamento, em especifico, que fica não muito longe da sua casa.

Por isso ele deve ser guardado. E mais importante, é por isso que nada deve passar.

Felizmente eles estão lá de guarda, um ajudando o outro, mesmo que nas piores situações o homem tenha pouco a fazer enquanto o cão, seu pelo ardendo como as chamas do sol, seus dentes brilhando como espadas sob a luz divina, impede que o caminho seja cruzado (o cão sabe que tem mais responsabilidades, mas jamais jogaria isso na cara do seu amigo).

Mas claro, o tempo vai passar como sempre faz. O homem há muito tempo não é jovem e logo - com um pouco de sorte - irá se aposentar para desfrutar alguns últimos dias de paz. O cachorro amarelo, por outro lado, vai permanecer lá, como já fazia antes e como irá fazer depois, guardando e esperando o próximo que irá ouvir sua mensagem e tomar o posto ao seu lado.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Pirâmide*

Céu azul e gramados verdes, pessoas passeando com suas famílias e animais de estimação. Um domingo perfeito no parque, do tipo que quase nada poderia estragar. O surgimento repentino de uma pirâmide gigantesca, rasgando a terra e emergindo no meio da área de piquenique, entretanto, surtiu esse exato efeito.
Um evento inesperado e que gerou reações peculiares. A maioria dos presentes fez o que se esperaria e fugiu de lá o mais rápido possível. Alguns, entretanto, permaneceram exatamente onde estavam, assistindo o monólito brotar da terra com uma fascinação que superava qualquer instinto.

Depois de seu espetacular surgimento, a pirâmide nada fez além de flutuar alguns metros acima do chão por alguns instantes – o que, por si só, já é um feito impressionante e perturbador para milhares de toneladas de pedra. O olho desenhado em seu topo – pelo menos, presume-se que era um desenho – fitando o céu, distante. E logo após veio a voz.
Os curiosos que a cercavam foram os primeiros a ouvir, mas logo ela alcançava todos na cidade. Uma voz baixa, não um sussurro, mas um grito muito distante que dizia coisas no fundo de suas mentes, coisas como “Quantas vezes quiser”, “Ele a matou perto do rio”, “Ela sempre soube, mas escolheu nada dizer”. Frases desconexas, incessantes e aparentemente sem sentido assolavam todos na cidade, até que um deles ouviu “Aqui estou para dar todas as respostas, mas nunca as perguntas”.
Logo, a cidade estava quase deserta. As verdades constantes e implacáveis erodiam as mentes dos cidadãos como ondas contra um castelo de areia. Somente os mais desesperados permaneceram, esperando encontrar alguma verdade em especial, tentando matar a sede em uma enchente.


*conto criado para um concurso, com o limite de 20 linhas. Escrever menos é muito mais difícil que escrever mais.

sábado, 2 de abril de 2016

Por que a galinha atravessou a rua?

Por que a galinha atravessou a rua?


Porque era o caminho que ela tinha que trilhar, mesmo que a passos relutantes. Então se partiu o véu que nublava seus olhos, e ela pode ver o outro lado da rua, e além, e seus passos não relutavam mais.  Mas, por mais que ela quisesse avisar as outras galinhas do que a aguardava, ela sabe que elas devem percorrer esse caminho sozinhas, em seu próprio tempo.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Registro Onírico: O Boi

Um sonho peculiar que tive ontem à noite, que talvez seja interessante registrar.

No meu sonho eu corria por uma estrada de terra, algo bem rural. Apenas o matagal ao meu redor, com a ocasional cerca dizendo que aquele lugar não era totalmente desprovido de civilização. E eu sabia que era um feriado, o Dia de Todos os Santos? De Todos os Espíritos? De todos alguma coisa de sentido espiritual ou religioso.

E eu sabia que era esse dia pelos grupos de pessoas que, agora eu via, enchiam a estrada, tanto que eu tinha que desviar delas para continuar minha corrida. Primeiro me deparei com monges encapuzados, andando devagar e de cabeça baixa, rumo a templos de pedra que eu sabia que estavam lá, entoando alguma coisa.

Depois de passar por eles eu vi círculos de pessoas, diversos deles. Pessoas vestidas de penas, vestidas de palha, vestidas de branco, todos dançando em seu próprio ritmo, cantando suas canções com toda força, mas sem nunca se distrair pela cacofonia que era formada.

Devagar mas evitando perder o ritmo eu negociei um caminho entre eles, buscando espaço para continuar meu treino, até que parei onde um grupo de pessoas estava parado de ponta a ponta na estrada, de costas para mim e olhando algo.

Na frente deles havia um homem, e o homem apresentava para eles um boi branco com um chifre quebrado e uma marca na testa. Ele dizia para sua plateia “Esse é nosso Deus, e ele anda entre nós.”

O homem guiou o boi para frente, onde ele se deitou no chão. Em seguida, foi a vez de a plateia ir à direção do boi que era seu deus, e para minha surpresa todos sacaram facas e facões. O propósito deles era claro enquanto cercavam o animal, e cada um cortou um pedaço do boi, um naco considerável, e o levou consigo. E no meio disso tudo, o boi não gritou nem parecia sentir dor. No final todos se foram, e a carcaça talhada do boi permanecia deitada na mesma posição, sua cabeça – a única parte poupada – olhando de forma vazia para o infinito.


Nesse ponto eu dei as costas para fazer meu caminho de volta, estrada acima. Nesse ponto eu acordei também.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Cor

Sabe aquele momento em que uma resposta vem até você, horas ou até dias depois da pergunta, te acertando em cheio bem na mente, como se sempre estivesse bem na sua frente e você apenas não a enxergou até aquele instante. Você até se sente meio bobo por isso, afinal, era tão óbvio.

Bom, eu me lembro  bem de uma vez em que isso aconteceu. Lá estava eu, parado com o carro, longe de casa, longe de tudo, na escuridão que só não era completa pelo semáforo que banhava o asfalto molhado com sua luz vermelha. E um instante depois, de forma completamente inesperada, a resposta veio.

Para qual pergunta? Uma que não me era feita havia anos: “Qual sua cor favorita?”. Uma pergunta bem infantil na verdade. Ou pelo menos muito dita na infância, quando damos nossos primeiros passos em busca da individualidade e acreditamos que ela possa ser encontrada nos nossos gostos para as coisas que nos cercam, até mesmo as mais simples.

E claro, nós crescemos, amadurecemos e passamos a ver que o que nos torna únicos possui nuances muito mais profundas do que um mero espectro de luz refletida em um objeto possa definir. E se mantemos uma resposta às vezes é a mesma da de nossos primeiros anos, apenas por que não tivemos razão para elaborar mais sobre ela. Não faz diferença, na verdade.

E ainda sim, foi essa a resposta que eu encontrei naquela noite, longe de casa, longe de tudo, no meio da escuridão vermelha do semáforo que parecia preencher o universo. Pois um segundo depois, o semáforo mudou.

O verde brilhava no asfalto úmido pela chuva, enchendo a rua, o carro, os meus olhos. E foi ai que eu percebi algo tão simples, tão óbvio: verde é minha cor favorita.

Mas era mais do que apenas uma cor escolhida para estar acima das outras. Ela tocava algo mais profundo em mim, e as memórias tomaram minha mente como uma enchente. Memórias do verde-dourado da luz do sol atravessando as copas das árvores, de estar no topo daquele penhasco sob o sol tropical e ver como o mar era mais esmeralda que safira. Lembranças de sonhos, onde campos verdejantes se correm até o horizonte sob o céu azul. De olhos, verdes como o verão.


Não era apenas a cor que eu gostava. Era a cor de tudo que eu amo no mundo.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Não Contém Glúten*

Todos nós já nos deparamos com essas palavras. Ultimamente é impossível evitá-las. Elas estão em nossos alimentos, cardápios, programas de televisão, camisetas, embalagens de xampus, panfletos imobiliários, tatuagens na lombar ou sendo desenhadas com fumaça por aviões no céu. Mas qual seria a finalidade para tamanha ubiquidade? E, afinal, o que é um glúten?

Como qualquer indivíduo razoável que tomou decisões estudadas sobre alimentação – e que definitivamente não está apenas seguindo uma moda – pode te dizer, glúten, em termos leigos, é a raiz de todo o mal, e vem oprimindo a humanidade há séculos, ditando o rumo de nossas civilizações, avanços científicos e morais, e até romances e outros aspectos extremamente íntimos de nossas vidas. Lembra aquela pessoa por quem você se apaixonou, achou que tinha tudo para dar certo, mas que sumiu e te deixou desolado e com um coração despedaçado em mãos? Pode por essa na conta do glúten.

Sabendo de todo mal que ele nos causa, não é de se estranhar essa euforia por termos conquistado nossa alforria. As primeiras passeatas sem glúten foram um sucesso de público e crítica, além de uma ótima diversão. Eu mesmo aproveite bastante, curtindo a música, os desfiles e a marcha com tochas e objetos domésticos como armas improvisadas, caçando qualquer glúten que poderia estar escondido nos cantos da cidade. Um ótimo passeio familiar, como os muitos pais que eu vi torrando marshmallows com seus filhos nos escombros ardentes em uma padaria incendiada poderiam te dizer.

Não somente, a vida sem glúten vem se tornando o padrão moderno. No mercado de trabalho, poder dizer que “não contém glúten” em seu curriculum é um diferencial atraente, aumentando em até 83% a chance de conseguir um cargo almejado. E nem pense em tentar se casar em uma igreja se você esteve sequer próximo a glúten nós últimos seis meses, ou sem antes ter todo trigo e seus derivados exorcizados por uma autoridade eclesiástica autorizada para esse serviço. Hoje em dia é simplesmente impossível conviver com certas proteínas.

Mas isso levanta a questão: Se nada contém glúten, será que o glúten é real?  Ou será apenas a manifestação dos medos da sociedade, dos males que queremos expurgar para nos purificar? Seria o glúten apenas um símbolo para o caminho que devemos trilhar para sermos humanos melhores? Não, é a resposta. Nesse exato momento, um glúten extremamente real e mais do que apenas um pouco furioso está tentando invadir meu quarto pela janela. Felizmente ele não está fazendo um bom trabalho e um mero cabo de vassoura aplicado entre suas ventosas quando ele se aproxima demais tem sido o bastante para impedi-lo. Se isso vai funcionar contra todos os outros que vejo descendo a rua, já não sei dizer.

Se você for celíaco, talvez queira evitar a minha rua. Pelo menos até termos uma opção sem glúten.



*Título meramente figurativo. História contém glúten. Uso, leitura ou mera proximidade à história pode** causar a presença de glúten no organismo.


** ”Pode” meramente eufemístico. Os efeitos são inevitáveis e irreversíveis. Já nesse instante a assimilação começou e não pode ser evitada.