sexta-feira, 15 de maio de 2015

Coelhos



Sentado na cozinha, já totalmente arrumado, mas apenas parcialmente acordado, o homem encarava distraidamente seu café da manhã.
‘Sonhei com um coelho essa noite’, ele disse com o olhar perdido nas profundezas escuras de sua xícara de café.
Sua esposa se sentou ao seu lado na mesa. ‘É? E o que aconteceu?’, ela disse, entre mordidas de seu desjejum.
‘Nada demais. Eu sonhei que estávamos na praia, e tinha um coelho lá. Ele não fez nada particularmente interessante’.
‘Hmm’, ela disse. ‘Se eu não me engano, sonhar com um coelho significa sorte. Vai ver é um sinal para passarmos uns dias na praia. Ou isso ou vamos ter mais um filho e, no momento, acho que molhar os pés no mar seria melhor’.
Ele deu um sorriso. ‘Tomara. Estou precisando de umas férias, mesmo que pequenas’. E, com um beijo carinhoso nos lábios de sua mulher, partiu para mais um dia de trabalho.

***

‘E toda noite você sonha com o mesmo coelho?’. O psicanalista não se parecia em nada com Freud, o que era uma decepção. Mas como não o via diretamente do divã, o homem decidiu imaginar a barba e os óculos.
‘Toda noite. Na verdade não estou sonhando com o coelho, ele apenas...aparece nos sonhos, não importa o que seja. Se sonho com o trabalho, ele está lá. Se estou de volta no colégio, ele vai estar em algum canto. Posso estar sonhando até com...hm, minha mulher, e ele está lá, o que é um tanto desconcertante. Faz dois meses já e não sei se é algo para me preocupar, mas está me deixando incomodado’.
‘De que forma isso o incomoda? Esse coelho faz algo peculiar em seus sonhos?’, disse o analista, com um charuto imaginário entre seus dedos.
‘Bom, não. Ele não faz nada além de ser um coelho. Ele anda em pequenos pulos, às vezes mexe o nariz e fica me olhando. Sempre me olhando. Quando só o vejo pelo canto do olho eu sei que ele está me encarando diretamente. Até quando não consigo ver ele em lugar algum eu sei que ele está lá, e me olhando como alguém espera alguma coisa, mas se recusa a dizer o que’. O homem imaginou Freud virando-se para o teto com as pontas dos dedos tocando umas as outras, concentrado em pensamento, o que não estava muito distante da realidade.
‘A princípio’, disse não-Freud, após a breve pausa, ‘devo presumir que este coelho é, de alguma forma, uma manifestação de seu subconsciente, tentando comunicar algo com você. Nosso trabalho nas próximas sessões será desvendar o significado para encontrarmos a verdadeira raiz do problema e, por fim, tratarmos dele’.
‘Espero que esteja certo. Se for mesmo isso, meu subconsciente esta falando cada vez mais. Na noite passada mesmo eu tenho quase certeza que tinha um segundo coelho’.

***

‘Doutor, você precisa me ajudar’, disse o homem, aos prantos. Olhos vermelhos, pele pálida, ele era uma ruína do que já foi. Nervos claramente forçados ao limite, ele batia o pé constantemente. ‘Já tem duas semanas que eu não durmo. Não consigo. Eu fecho os olhos e começo a sufocar, milhares deles me esmagando!’.
‘Calma, calma, vamos mais devagar. Quem está te esmagando?’, respondeu o médico. Semanas de privação de sono impediram o homem pensar sobre como o doutor seria perfeito como um gangster dos anos 50.
‘Os coelhos! Eu caio no sono e os vejo. Milhares! Tantos que não consigo me mexer. Vejo todo aquele pelo branco, tudo branco e eles me soterram, me esmagam, não consigo me mexer e acordo desesperado. Não durmo mais que alguns segundos por vez, e já faz duas semanas.’
 ‘Você tem tomado alguma medicação controlada ou...?’
‘Não. Nada. De tipo algum’.
O rosto do médico se retorceu de forma estranha. Se estava intrigado, descrente ou prestes a fazer uma oferta irrecusável, era difícil dizer.
‘Não sei o que dizer ao senhor. “Coelhos nos sonhos” não é um sintoma médico que eu conheça. Talvez se o senhor procurasse um psiquiatra ou um psicanalista, ele poderia ajuda-lo melhor’.
‘Foi a primeira coisa que fiz! Ele tentou me ajudar a me livrar deles, até o ponto em que eram tantos que todos os meus sonhos eram forrados de um tapete branco com orelhas compridas até onde eu consegui ver. Eu já não conseguia sonhar direito – qualquer coisa que eu tentava fazer acabava comigo tropeçando e caindo em cima de um monte de coelhos assustados. Até que um dia ele não aceitou mais novas sessões. Disse que tinha visto algo branco correndo em seus próprios sonhos, e que não ia correr o risco de ter seu sono invadido também’.
O médico se largou na sua cadeira, deu com os ombros e disse ‘Olha rapaz, eu não faço ideia se você esta falando sério ou tirando uma comigo, mas vou te quebrar essa’, e rapidamente fez uma receita. ‘Não sei se isso vai curar os seus coelhos, mas deve te ajudar a dormir’.

***

‘E o remédio não ajudou em nada?’, ela disse. Ver seu marido reduzido a uma pilha de nervos a estava deixando terrivelmente aflita.
´Nada. Mesmo apagado, sem sonhar, o espaço escuro e vazio está tão cheio de coelhos que não consigo respirar’, ele disse com o rosto nas mãos, prestes a desabar em lágrimas.
Sua esposa olhou para ele com compaixão, quando seu rosto se iluminou. ‘Acho que...não sei, vamos testar algo? Não é uma ideia normal, mas não é uma situação comum’.
O homem olhou para sua esposa com os olhos exaustos, mas deu um sorriso amoroso. ‘Claro’, disse dando com os ombros ‘O que mais eu tenho a perder? Vamos testar tudo’.
‘Ok, deite-se e relaxe enquanto eu vou preparar algo’.
O homem tentou ficar o mais relaxado possível sem deixar a exaustão tomar conta. Sua esposa voltou depois de alguns minutos com uma foto impressa em mãos.
‘Olhe bem para isso, concentre-se na imagem’.
Na foto uma figura esquia e elegante corria por entre arbustos. Seu pelo lustroso brilhava na cor do céu no fim da tarde. ‘Uma raposa?’.
‘Isso.  Agora, tente capturar a imagem e durma. Vamos ver o que acontece’.
Focando na figura na foto, os olhos dele rapidamente começaram a pesar e, de repente, o sono o levou para longe. E, instantes depois, acordou de sobressalto.
‘Desculpe amor, eu estava torcendo para dar certo’, disse a esposa, uma leve frustração no seu tom de voz.
‘Não amor, dessa vez foi diferente. No começo eu ainda estava preso quando, de repente, a massa branca começou a se mexer e eu estava sendo arrastado por uma avalanche peluda desesperada. Eu ainda acordei apavorado, mas alguma coisa assustou todos os malditos coelhos!’
‘Então...deu certo? Sério?’
‘Talvez. Só um jeito de descobrir’, ele disse sorrindo. Então voltou a se deitar e teve a melhor noite de sono de toda sua vida.

***

Os sonhos agora estavam de volta ao normal, ou pelo menos tão normal quanto sonhos conseguem ser. Às vezes ele ainda via uma sombra branca pelos cantos oníricos, mas sempre em disparada, com um raio vermelho alaranjado vindo logo em seguida.
Algumas raras vezes a raposa parava e o olhava diretamente, e ele a cumprimentava com o respeito que se deve a um profissional que faz seu trabalho bem feito. E a raposa, com um leve aceno da cabeça, o cumprimentava de volta, antes de voltar a perseguir sua presa.