quarta-feira, 10 de junho de 2015

Não Contém Glúten*

Todos nós já nos deparamos com essas palavras. Ultimamente é impossível evitá-las. Elas estão em nossos alimentos, cardápios, programas de televisão, camisetas, embalagens de xampus, panfletos imobiliários, tatuagens na lombar ou sendo desenhadas com fumaça por aviões no céu. Mas qual seria a finalidade para tamanha ubiquidade? E, afinal, o que é um glúten?

Como qualquer indivíduo razoável que tomou decisões estudadas sobre alimentação – e que definitivamente não está apenas seguindo uma moda – pode te dizer, glúten, em termos leigos, é a raiz de todo o mal, e vem oprimindo a humanidade há séculos, ditando o rumo de nossas civilizações, avanços científicos e morais, e até romances e outros aspectos extremamente íntimos de nossas vidas. Lembra aquela pessoa por quem você se apaixonou, achou que tinha tudo para dar certo, mas que sumiu e te deixou desolado e com um coração despedaçado em mãos? Pode por essa na conta do glúten.

Sabendo de todo mal que ele nos causa, não é de se estranhar essa euforia por termos conquistado nossa alforria. As primeiras passeatas sem glúten foram um sucesso de público e crítica, além de uma ótima diversão. Eu mesmo aproveite bastante, curtindo a música, os desfiles e a marcha com tochas e objetos domésticos como armas improvisadas, caçando qualquer glúten que poderia estar escondido nos cantos da cidade. Um ótimo passeio familiar, como os muitos pais que eu vi torrando marshmallows com seus filhos nos escombros ardentes em uma padaria incendiada poderiam te dizer.

Não somente, a vida sem glúten vem se tornando o padrão moderno. No mercado de trabalho, poder dizer que “não contém glúten” em seu curriculum é um diferencial atraente, aumentando em até 83% a chance de conseguir um cargo almejado. E nem pense em tentar se casar em uma igreja se você esteve sequer próximo a glúten nós últimos seis meses, ou sem antes ter todo trigo e seus derivados exorcizados por uma autoridade eclesiástica autorizada para esse serviço. Hoje em dia é simplesmente impossível conviver com certas proteínas.

Mas isso levanta a questão: Se nada contém glúten, será que o glúten é real?  Ou será apenas a manifestação dos medos da sociedade, dos males que queremos expurgar para nos purificar? Seria o glúten apenas um símbolo para o caminho que devemos trilhar para sermos humanos melhores? Não, é a resposta. Nesse exato momento, um glúten extremamente real e mais do que apenas um pouco furioso está tentando invadir meu quarto pela janela. Felizmente ele não está fazendo um bom trabalho e um mero cabo de vassoura aplicado entre suas ventosas quando ele se aproxima demais tem sido o bastante para impedi-lo. Se isso vai funcionar contra todos os outros que vejo descendo a rua, já não sei dizer.

Se você for celíaco, talvez queira evitar a minha rua. Pelo menos até termos uma opção sem glúten.



*Título meramente figurativo. História contém glúten. Uso, leitura ou mera proximidade à história pode** causar a presença de glúten no organismo.


** ”Pode” meramente eufemístico. Os efeitos são inevitáveis e irreversíveis. Já nesse instante a assimilação começou e não pode ser evitada.