Sentado na cozinha, já totalmente arrumado, mas apenas parcialmente
acordado, o homem encarava distraidamente seu café da manhã.
‘Sonhei com um coelho essa noite’, ele disse com o olhar
perdido nas profundezas escuras de sua xícara de café.
Sua esposa se sentou ao seu lado na mesa. ‘É? E o que
aconteceu?’, ela disse, entre mordidas de seu desjejum.
‘Nada demais. Eu sonhei que estávamos na praia, e tinha um
coelho lá. Ele não fez nada particularmente interessante’.
‘Hmm’, ela disse. ‘Se eu não me engano, sonhar com um coelho
significa sorte. Vai ver é um sinal para passarmos uns dias na praia. Ou isso
ou vamos ter mais um filho e, no momento, acho que molhar os pés no mar seria
melhor’.
Ele deu um sorriso. ‘Tomara. Estou precisando de
umas férias, mesmo que pequenas’. E, com um beijo carinhoso nos lábios de sua
mulher, partiu para mais um dia de trabalho.
***
‘E toda noite você sonha com o mesmo coelho?’. O
psicanalista não se parecia em nada com Freud, o que era uma decepção. Mas como
não o via diretamente do divã, o homem decidiu imaginar a barba e os óculos.
‘Toda noite. Na verdade não estou sonhando com o coelho, ele
apenas...aparece nos sonhos, não importa o que seja. Se sonho com o trabalho,
ele está lá. Se estou de volta no colégio, ele vai estar em algum canto. Posso
estar sonhando até com...hm, minha mulher, e ele está lá, o que é um tanto
desconcertante. Faz dois meses já e não sei se é algo para me preocupar, mas
está me deixando incomodado’.
‘De que forma isso o incomoda? Esse coelho faz algo peculiar
em seus sonhos?’, disse o analista, com um charuto imaginário entre seus dedos.
‘Bom, não. Ele não faz nada além de ser um coelho. Ele anda
em pequenos pulos, às vezes mexe o nariz e fica me olhando. Sempre me olhando. Quando
só o vejo pelo canto do olho eu sei que ele está me encarando diretamente. Até
quando não consigo ver ele em lugar algum eu sei que ele está lá, e me olhando
como alguém espera alguma coisa, mas se recusa a dizer o que’. O homem imaginou
Freud virando-se para o teto com as pontas dos dedos tocando umas as outras,
concentrado em pensamento, o que não estava muito distante da realidade.
‘A princípio’, disse não-Freud, após a breve pausa, ‘devo
presumir que este coelho é, de alguma forma, uma manifestação de seu
subconsciente, tentando comunicar algo com você. Nosso trabalho nas próximas
sessões será desvendar o significado para encontrarmos a verdadeira raiz do
problema e, por fim, tratarmos dele’.
‘Espero que esteja certo. Se for mesmo isso, meu
subconsciente esta falando cada vez mais. Na noite passada mesmo eu tenho quase
certeza que tinha um segundo coelho’.
***
‘Doutor, você precisa me ajudar’, disse o homem, aos
prantos. Olhos vermelhos, pele pálida, ele era uma ruína do que já foi. Nervos claramente
forçados ao limite, ele batia o pé constantemente. ‘Já tem duas semanas que eu
não durmo. Não consigo. Eu fecho os olhos e começo a sufocar, milhares deles me
esmagando!’.
‘Calma, calma, vamos mais devagar. Quem está te esmagando?’,
respondeu o médico. Semanas de privação de sono impediram o homem pensar sobre
como o doutor seria perfeito como um gangster dos anos 50.
‘Os coelhos! Eu caio no sono e os vejo. Milhares! Tantos que
não consigo me mexer. Vejo todo aquele pelo branco, tudo branco e eles me soterram,
me esmagam, não consigo me mexer e acordo desesperado. Não durmo mais que
alguns segundos por vez, e já faz duas semanas.’
‘Você tem tomado
alguma medicação controlada ou...?’
‘Não. Nada. De tipo algum’.
O rosto do médico se retorceu de forma estranha. Se estava
intrigado, descrente ou prestes a fazer uma oferta irrecusável, era difícil dizer.
‘Não sei o que dizer ao senhor. “Coelhos nos sonhos” não é
um sintoma médico que eu conheça. Talvez se o senhor procurasse um psiquiatra
ou um psicanalista, ele poderia ajuda-lo melhor’.
‘Foi a primeira coisa que fiz! Ele tentou me ajudar a me
livrar deles, até o ponto em que eram tantos que todos os meus sonhos eram
forrados de um tapete branco com orelhas compridas até onde eu consegui ver. Eu
já não conseguia sonhar direito – qualquer coisa que eu tentava fazer acabava
comigo tropeçando e caindo em cima de um monte de coelhos assustados. Até que
um dia ele não aceitou mais novas sessões. Disse que tinha visto algo branco
correndo em seus próprios sonhos, e que não ia correr o risco de ter seu sono invadido
também’.
O médico se largou na sua cadeira, deu com os
ombros e disse ‘Olha rapaz, eu não faço ideia se você esta falando sério ou
tirando uma comigo, mas vou te quebrar essa’, e rapidamente fez uma receita. ‘Não
sei se isso vai curar os seus coelhos, mas deve te ajudar a dormir’.
***
‘E o remédio não ajudou em nada?’, ela disse. Ver seu marido
reduzido a uma pilha de nervos a estava deixando terrivelmente aflita.
´Nada. Mesmo apagado, sem sonhar, o espaço escuro e vazio
está tão cheio de coelhos que não consigo respirar’, ele disse com o rosto nas
mãos, prestes a desabar em lágrimas.
Sua esposa olhou para ele com compaixão, quando seu rosto se
iluminou. ‘Acho que...não sei, vamos testar algo? Não é uma ideia normal, mas
não é uma situação comum’.
O homem olhou para sua esposa com os olhos exaustos, mas deu
um sorriso amoroso. ‘Claro’, disse dando com os ombros ‘O que mais eu tenho a
perder? Vamos testar tudo’.
‘Ok, deite-se e
relaxe enquanto eu vou preparar algo’.
O homem tentou ficar o mais relaxado possível sem deixar a
exaustão tomar conta. Sua esposa voltou depois de alguns minutos com uma foto
impressa em mãos.
‘Olhe bem para isso, concentre-se na imagem’.
Na foto uma figura esquia e elegante corria por entre
arbustos. Seu pelo lustroso brilhava na cor do céu no fim da tarde. ‘Uma
raposa?’.
‘Isso. Agora, tente
capturar a imagem e durma. Vamos ver o que acontece’.
Focando na figura na foto, os olhos dele rapidamente
começaram a pesar e, de repente, o sono o levou para longe. E, instantes
depois, acordou de sobressalto.
‘Desculpe amor, eu estava torcendo para dar certo’, disse a
esposa, uma leve frustração no seu tom de voz.
‘Não amor, dessa vez foi diferente. No começo eu ainda estava
preso quando, de repente, a massa branca começou a se mexer e eu estava sendo
arrastado por uma avalanche peluda desesperada. Eu ainda acordei apavorado, mas
alguma coisa assustou todos os malditos coelhos!’
‘Então...deu certo? Sério?’
‘Talvez. Só um jeito de descobrir’, ele disse
sorrindo. Então voltou a se deitar e teve a melhor noite de sono de toda sua
vida.
***
Os sonhos agora estavam de volta ao normal, ou pelo menos
tão normal quanto sonhos conseguem ser. Às vezes ele ainda via uma sombra branca
pelos cantos oníricos, mas sempre em disparada, com um raio vermelho alaranjado
vindo logo em seguida.
Algumas raras vezes a raposa parava e o olhava diretamente,
e ele a cumprimentava com o respeito que se deve a um profissional que faz seu
trabalho bem feito. E a raposa, com um leve aceno da cabeça, o cumprimentava de
volta, antes de voltar a perseguir sua presa.